Tenho muitas e boas memórias de crescer contigo, naquela que foi sempre a tua casa. Muitas delas, envolvem comida: lembro-me de comprares arrufadas e bolos para o lanche e de fazeres cevada forte, rissóis, arroz de frango, inúmeros pratos inventados “daquelas coisas que tu comes”, quando passei a ser vegetariana. Bolos fazia a tia, tua irmã, a tua especialidade era o pudim, que era bom mesmo quando saía mal. A mousse de maçã com pêras bêbedas também era presença assídua nos almoços de Domingo. Ah, os almoços de Domingo; deixaram muitas saudades, por mais que na época me parecessem apenas uma obrigação incontornável.
Deixavas-nos fazer practicamente tudo, a mim e à minha irmã, mesmo que implicasse uma desarrumação descontrolada: o exacto oposto do que tínhamos em casa, e que por isso mesmo, sabia pela vida.
Lembro-me de adormeceres a rezar. De estares sempre a dizer, guarda, depois vais ver isto e pensar que foi a tua avó que fez; tinhas razão. A toda a hora, vejo coisas que fizeste e penso em ti. Foi uma vida de coisas que deixaste, porque - e ainda bem - nunca estavas parada; e também porque não deitavas quase nada fora. Foi também uma vida cheia de histórias para contar, sobre pais, irmã, irmão, os filhos, as netas, a restante família toda, as “moças” e “moços” que conhecias.
Não foi tudo um mar de rosas ao conviver contigo. Eras teimosa, intransigente nalgumas coisas, até ao fim, há um ano atrás. Nem sempre eras simpática e compreensiva; todos tentavam perdoar, porque eram coisas tuas. Felizmente, não chegaste a notar pandemia nenhuma. Porque se tivesses notado, é porque seria o fim do mundo a chegar. Para ti, chegou a uns belos e preenchidos 99 anos.
Pois. Era o que respondias, quando já não ouvias muito bem. Dava para tudo. Pois.
Pois bem, avó, essa mesma pandemia que não chegaste a conhecer fez com que a despedida fosse bem de longe. Desculpa. Já te fui visitar depois, mas não é a mesma coisa.
Sim, avó, eu continuo sempre a ter cuidado ao atravessar a rua, a ter cuidado com o sol na cabeça, a agasalhar-me, a fechar bem a porta, mesmo que já cá não estejas para me lembrar sempre.
Fiz de ti avó, e vou ser sempre a tua neta.
Com carinho,
Isa
(Maria Emília Sousa, 23 de Outubro de 1920 - 25 de Março de 2020)